sábado, 6 de dezembro de 2014

Trecho avulso de uma noite qualquer

Não tava aguentando mais! Aquele cheiro maldito de cigarro tava em tudo: sofá, cama, cortinas, nas minhas almofadas. Parece que até as frutas e meu arroz e feijão se contaminaram. Mas que porra! Por isso já faz dias que eu não fumo. Peguei nojo. Ao menos isso ela fez bem causar em mim. Sobre as outras coisas que ela me fez... Not fair, meu amigo, minha amiga, not fair.
Tô aqui vomitando tudo isso pra você, a essa hora da madrugada. Obrigado pela companhia. Você é um gentleman, uma verdadeira lady. Estes são meus momentos, sabe, os que eu penso mais. Principalmente por um fator incontrolável. Me sinto sonolento durante o dia inteirinho e à noite o sono foge de mim como uma galinha que tá pra ser sacrificada. Ou melhor, como o Coelho Branco. E quando eu consigo agarrá-lo, furioso, já pelas cinco e meia, é como se ele gritasse, esganiçado: “Você tá atrasado! Você tá atrasado!”. E realmente é assim. O sono anda me atrasando tudo, e duma perspectiva macroscópica, a minha vida por completo. Espero que a morte se atrase também... Gosto de viver, embora às vezes pareça masoquismo.
Por agora, mesmo que o Coelho Branco sumisse de vista, eu ainda assim não conseguiria embalar no sono. Aquela puta é quem roubou-me este direito. Sou trabalhador, preciso dormir, droga! Não se faz isso com um cristão. Mas é batata: é deitar a cabeça no travesseiro, a imagem dela me vem. Minha impressão é que quando coloco a cabeça na horizontal, minhas piores memórias caem num compartimento de pensamentos que são projetados na mente. E então... Cá sempre estou, caminhando a ermo. Mas é terapêutico, devo dizer, e um tanto poético. Esse asfalto que fica carregado de automóveis e aquece mais que o inferno, à noite se estende como tapete vermelho, só que cinza, pra receber pessoas como eu e você – ou melhor, só a mim porque você está aqui por minha causa. Apesar dos pesares, gosto de maturar o sofrimento desta forma. Por isso que as noites são minhas melhores conselheiras. É um papo de escuridão para escuridão, entende?
À noite, à noite, à noite; eu, eu, eu... – I’m sorry, tô falando demais sobre mim. Conte-me, como anda a vida? Podemos parar num bar que costumo ir. É um pouco longe, mas se aumentarmos o compasso, chegaremos logo. Necessito de algo forte para rasgar-me por dentro.
Pensando melhor, encher a cara seria igualmente péssimo, porque ela era de beber também. A tentativa de fugir do ectoplasma dela me levaria de volta a ele. Quer saber? Foda-se. Pelo menos eu tenho direito e motivos de sobra pra ficar bêbado porque, além de trabalhador, sou um ser humano, filho de Deus. Aliás, ela bebia como um homem e nada se percebia de alterado – continuava com aquele maldito ar de superioridade que me deixava de joelhos. Suas únicas alterações estavam nos olhos, que ficavam meio fechados, e na fala, um pouco rouca. O quê? Parecem sinais de embriaguez? Pois te juro que não eram. Tanto que ela sempre estava sóbria o suficiente pra me levar de volta pro apê entre tropeços, quedas e golfadas. A megera ria da minha cara como se eu fosse um puppie dela, um bicho que pudesse achar cute quando fizesse gracinha. Se você pudesse entrar na minha mente, logo entenderia o que tô falando. Mas não, não faça isso. De miseráveis o mundo já tá cheio.
Falando nisso, como será que deve estar aquela lazarenta? Sequer se lembra de mim, creio eu. Deve estar descansando tranquila ao lado de um outro trouxa qualquer. Me chupou o néctar e me largou bagaço... Pelo amor de Deus, fala alguma coisa, não quero mais pensar nisso. Acho que antes de trabalhar vou acordar mais cedo – ou melhor, emendar a noite ao dia – e passar a navalha nessa barba. Preciso criar um ódio maior que este carcomido aqui para tentar esquecê-la. Sim, sim, não gosto de ficar com o rosto limpo. Parece que os pelos dão certo respeito aos homens. E como minha feição é séria mesmo quando estou feliz, as pessoas sentem medo de puxar conversa e me deixam em paz, ainda bem. Não, não que eu seja antissocial, mas gosto de ter meu espaço. E não é que na primeira vez que nos encontramos ela teve a audácia de romper esse limite e falar comigo, descaradamente, em lugar público, assim, de repente? Estávamos subindo pelo elevador. Me avaliou de alto a baixo e perguntou se eu não queria desistir do que quer que eu estivesse prestes a fazer e apertar o botão do térreo e sair com ela naquele exato instante, dá para acreditar nisso? Não é cena de cinema não, tô te falando! Aquela ali é porreta das ideias! E eu? Obedeci. Meu erro, aliás, foi ter obedecido. Dali começou todo esse furdunço, esse enrosco. É, isso define perfeitamente o resultado: um enrosco. E mais: também uma dor de dentes dos diabos, porque naquele dia eu tava justamente indo ao dentista tratar disso. Nem aspirina dava jeito. Tava virando um pau porque não conseguia comer.
Eita, bem lembrado. Onde será que eu coloquei minhas aspirinas? Se eu sentir dor algum dia desses, morro, e ninguém vai saber. Perdi a localização porque ela mudou tudo no meu apê. Uma vez eu, insone que sou, tava descansando pra valer, daí fui acordado por ela aos sacolejos. Fala, manolo! Tudo nos conformes por aqui? Mas que beleza, hein?! Ei, me veja um absinto pra dar um choque no fígado. Vai querer o quê? Manolo, perdão, me veja dois! Então, onde eu tava? Ah, sim. Então... Fui acordado aos sacolejos, né? Sabe o que ela me pediu? Uma escrivaninha com várias prateleiras para colocar os seus livros, que chegariam no outro dia... Ela não me deixou dormir mais. E também me atazanou no trabalho até que eu ligasse pra um marceneiro amigo meu e disponibilizasse a tal da escrivaninha que ela queria. O síndico me xingou à beça quando o móvel chegou e eu tentei subir com ele.. Valeu manolo! Se duvidar, minha família deve estar amaldiçoada até a quinta geração. Mas se estiver também, foda-se, não quero ter filhos mesmo...
A escrivaninha foi canonizada. Eu não podia sequer tocar nela porque a bendita não deixava. Besta. Quando não tava na correria do jornalismo, tava metida nos livros, porque fazer amor mesmo, só quando surgisse a vontade nela. Então lá ia eu, abandonado, pro quarto, matar sozinho a minha vontade, se é que você me entende. Aquilo me dava nos nervos! Era um tal de Doutorésqui pra lá, Chamarovi pra cá, e Machado, e Cortázar, e George Amado e blá, blá, blá.
Me sentia um asno perto dela. Para tudo havia uma explicação, um conhecimento a respeito, e eu ficava com cara de besta, só assentindo, fingindo entender alguma coisa. O que eu mais odiava é quando ela lia os livros de... – como era mesmo o nome? – psicanálise, certo? Me analisava o tempo todo, me descrevia, às vezes até na frente dos outros. Ficava puto da vida porque ela acertava. Me sentia pelado como vim ao mundo. Por causa dela eu descobri quem sou. Agora tô livre disso, mas não tô livre daquela escrivaninha que me assombra todo dia com seus vazios, indicando Ela esteve aqui. Não tenho nada para enfiar ali e preencher o vácuo. Então eu fico sentado em frente ao móvel, paralisado. A madeira fica estalando alto à noite também porque não tem nada pra fazer peso, ou sei lá o quê. Ela certamente saberia me explicar por que isso acontece...
E eu, o que sei das coisas, sobre mim, sobre as pessoas a minha volta? Nada! Bulhufas! Necas de pitibiriba! Ah, sei que minha mãe sofre de diabetes, e é só. Mas se me perguntarem o tipo, eu já não sei dizer... E essa tal de doença das Betes que dá no sangue. Perigoso. Coisa séria. Preciso tomar mais cuidado, fazer uns exames e tal. Gente, nem sei qual tipo de sangue eu tenho, vá dizer... Minto. Ela certa vez falou que o seu sangue não pode receber o de mais ninguém, mas não lembro o porquê. Frescura do cacete. Bom, eu não deveria estar falando essas coisas, ou deveria? Sei não, sei não. Mas o que é a vida senão um punhado generoso de incertezas? As flores, por exemplo, têm vida, e algumas têm espinhos, que as pessoas acham que são pra machucar, mas, na verdade, são suas defesas naturais. Nossa, lembrei de uma canção agora, como é mesmo? Peraí. E o meu jasmim da vida ressecô, morreu, dos pé que brotô Maria nem Margarida nasceu. Haha! Grande homem, esse Djavan, grande homem. Ela também secou, como acontece no sertão. Que vontade que me deu agora de dançar, sambar, até cair no chão. Rimou. E tem mais: bailar assoviando, porque ninguém nunca fez isso na história da humanidade. Eita, a humanidade. É um imenso radar, a humanidade. Se fez sempre e será assim. Descobrindo as pessoas e se valendo das almas e espíritos... Vivas, à humanidade e à democracia! Porque se a corrupção não existisse, não haveria humanidade. Essa é que é a verdade, não é? Por isso eu vivo feliz, porque eu não estou aqui, não sou a humanidade. Hum, que é? Tem que estar bêbado mesmo, me deixa quieto aqui. Também não faço questão das coisas. Que vá embora, que parta! Melhor assim. Meus pais não me criaram pra ser dependente de ninguém, estão ouvindo? De ninguém! Manolo, me traz aquela ali. Não, essa não, aquela. Isso! Não estou vendo muito bem, mas acho que é essa. Grande homem, esse manolo. E pra voar não é preciso muito, certo? Os poetas dizem isso sempre. Dê-me minhas asas, mas não me dê Redbull, haha!

Mil perdões. My mistake. Nossa. Não queria que você visse isso, eu... Devo ter falado tanta merda... O que foi que eu disse depois daquele troço? Não, não me conte. Prefiro nem saber. O manolinho ainda vai escrever um livro com tanto material comprometedor sobre mim. Com nota introdutória feita por ela. E olha só seus sapatos... São bem bonitos, mas... Quer dizer, foram, pois agora não estão mais por minha causa. Ela odiava sapatos bonitos, achava desnecessário. Uma vez eu quis impressionar e convidei ela para um jantar e fui todo galã porque achei que ela merecia. Me apresentei de smoking, com gravata borboleta e tudo mais. E logo eu que odeio roupa social. A reação dela foi dizer que eu tava exagerado, que não precisava de tudo aquilo. Pior noite da vida. Deveria ter gasto aquele dinheiro com outra urgência; sem falar do tempo, que poderia ter passado dormindo... Não sabia onde enfiar minha cara. Tá parecendo um déjà vu, porque também não sei onde enfiar a minha agora, depois esse vexame. Olha, fechei a boca e tentei segurar, mas não deu, juro por Deus. Quer dizer, juro pela minha vida, porque por Deus não se jura. Não, meus pais não eram cristãos. Quem me ensinou isso foi ela. Não. Não! Mas que porra é essa? Inventei de sair com você para tentar esquecer tudo isso e me embaracei ainda mais... Não, por favor! Sua companhia sempre é valiosa, mas veja bem, o amor, o amor poderia ser um bebê no ventre, não poderia? Sim, fica o tempo que tem que ficar, sai, corta o cordão umbilical e fica por isso mesmo. Quer dizer, cria-se a coisinha depois disso, mas no útero não resta mais nada... Hm, verdade, né? Você tem razão, ficam as cicatrizes... Vou pensar numa outra metáfora. Palavra bonita, essa. Ou melhor, a realidade é que tudo que pratica uma ação deixa o rastro do que foi ou fez antes disso. Devo aceitar esse fato, mas não tá sendo fácil. Enfim, quer subir, tomar um chá, mais um café forte? Tenho pão de queijo também... Ah, sim, entendo. O vagabundo da história aqui sou eu, né? Não, não se desculpe, tô só tirando uma com a sua cara. Caramba, tô parecendo ela. Não, mas chega de falar dela por hoje. Esqueça. Vou subir. Apareça mais, tá certo? Goodbye, my friend, a gente se fala. Fique bem. Obrigado. Até.

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