sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Existência

Estava lendo de cabeça baixa quando a Existência despiu-se por completo. Como uma apunhalada repentina na nuca, um frio percorreu a espinha de Lúcio por meio da ideia gritante de que existia. De repente, deu-se conta de seu corpo, de suas pontas, de seus limites. Levantou a cabeça devagar e cautelosamente, acostumando-se com a sua forma como se tivesse acabado de vir à luz, e observou os outros passageiros que, aparentemente, estavam alheios àquela descoberta íntima.
Ao seu lado, havia um indivíduo. (Pausa.) Reforçou o pensamento: a pouquíssimos milímetros do seu lado havia um indivíduo, corpóreo, que abrigava coisas que fugiam do seu conhecimento. Até porque as pessoas têm existências diferentes umas das outras, tão sabidas quanto a de seus vizinhos do barulhento 703, no Bloco D, sobre o qual está empilhado; 801, 802 e 804, que o limitam; 801 do Bloco A, que cobre sua vista do sol; 903, que o comprime, esmaga; e 1.104 do Bloco C, que geralmente para na vaga de garagem ao lado da sua.
Mas qual era a existência deste indivíduo? O corpo de Lúcio estava sentado ao lado deste outro corpo, compartilhando um espaço em comum, e nada sabia sobre ele. Intrigou-se. Se estendesse as mãos, tocaria no Outro. (Valha-me Deus!) Não somente isso, mas o sentiria, e ainda assim pouco saberia sobre ele. Baixou os olhos novamente e tentou situar-se no tempo e no espaço para não ficar solto desse jeito. Viver sem rédeas assim é inconcebível, coisa de louco. Viver desprendido do que quer que seja é insanidade, tem sim é que voltar. Agora ele inspirou, pensando que dessa forma retornaria ao estado anterior, a de que existia simplesmente sem ter a consciência disso para no fim descansar em paz como qualquer outro ser mortal. Mas foi em vão.
Sua existência era o agora. Ou será que não? A vida é uma palma no infinito. Reverbera o som... e some – já não está mais em tempo ou espaço algum. Ou será que não? Quem sabe o som só se dissipa, se enfraquece, se torna inaudível, mas continua a existir. Ou será que não? Intrigou-se. Pois o que será que vinha antes da palma? “Deus”, emendou logo, nervoso, querendo voltar à realidade, “antes da palma vem Deus”. Mas a imagem não lhe ofereceu conforto, pois o que sabe é que Deus é uma palma que nunca foi batida; é som que reverbera desde sempre e no sempre do porvir como no instante agora.
A vida intimidava! Ela abundava impiedosamente sobre o corpo friorento de Lúcio, que se comprimia por não conseguir assimilar toda a existência que acontecia simultaneamente neste exato momento. Concentrava-se no corpo vizinho, mas enquanto pensava nele, sabia que outro corpo existia sem precisar ser percebido, sem a força de um pensamento como o dele. Ele era mais um, assim como ele não era o centro da Terra, pois este não é o centro do nosso sistema, que por sua vez não está no meio do Universo, que, assim por diante, está enfiado num nada infinito que não tem meio porque nunca fincaram-lhe um ponto específico para ser dito: “Aqui é o início”.
Neste mundo vivem milhares de corpos autônomos, além de outros tantos corpos que habitaram este planeta e que deixaram o rastro de sua existência aqui. Mas aqui como, onde? As existências conhecidas são poucas, e ainda assim, nem todos as conhecem; sem falar de que algumas delas são baseadas em registros incertos, tão degradados como a palma que some. Descrever – organizar, expressar, racionalizar, destrinchar (...), como queira – tudo isso tudo num papel seria inútil a Lúcio: nada escapa de uma ordem irremediável, da sucessão de fatos que observa. Não conseguiria expressar a onisciência (parte orgânica, parte incorpórea) destes seres todos que Lúcio pensava existir e tentava inutilmente digerir. E mais:
Próxima estação: Paulista, transferência para a linha Dois-Verde do Metrô.
“É aqui que eu desço, é aqui”, sussurou Lúcio, exasperado, despertando. Com a mente inerte no momento agora, ele pediu licença ao Outro e saiu apressado, incorporando-se à correnteza de outros tantos indivíduos – um grande e besta cardume de peixes vivendo em seus trilhos de existências translúcidas e breves como o dia, tão monótonas aqui como no momento primeiro e também durante o porvir.

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