Estava lendo
de cabeça baixa quando a Existência despiu-se por completo. Como uma apunhalada
repentina na nuca, um frio percorreu a espinha de Lúcio por meio da ideia
gritante de que existia. De repente, deu-se conta de seu corpo, de suas pontas,
de seus limites. Levantou a cabeça devagar e cautelosamente, acostumando-se com
a sua forma como se tivesse acabado de vir à luz, e observou os outros
passageiros que, aparentemente, estavam alheios àquela descoberta íntima.
Ao seu lado,
havia um indivíduo. (Pausa.) Reforçou o pensamento: a pouquíssimos milímetros
do seu lado havia um indivíduo, corpóreo, que abrigava coisas que fugiam do seu
conhecimento. Até porque as pessoas têm existências diferentes umas das outras,
tão sabidas quanto a de seus vizinhos do barulhento 703, no Bloco D, sobre o
qual está empilhado; 801, 802 e 804, que o limitam; 801 do Bloco A, que cobre
sua vista do sol; 903, que o comprime, esmaga; e 1.104 do Bloco C, que
geralmente para na vaga de garagem ao lado da sua.
Mas qual era a
existência deste indivíduo? O corpo
de Lúcio estava sentado ao lado deste outro corpo, compartilhando um espaço em
comum, e nada sabia sobre ele. Intrigou-se. Se estendesse as mãos, tocaria no
Outro. (Valha-me Deus!) Não somente isso, mas o sentiria, e ainda assim pouco
saberia sobre ele. Baixou os olhos novamente e tentou situar-se no tempo e no
espaço para não ficar solto desse jeito. Viver sem rédeas assim é inconcebível,
coisa de louco. Viver desprendido do que quer que seja é insanidade, tem sim é
que voltar. Agora ele inspirou, pensando que dessa forma retornaria ao estado
anterior, a de que existia simplesmente sem ter a consciência disso para no fim descansar
em paz como qualquer outro ser mortal. Mas foi em vão.
Sua existência
era o agora. Ou será que não? A vida é uma palma no infinito. Reverbera o
som... e some – já não está mais em tempo ou espaço algum. Ou será que não?
Quem sabe o som só se dissipa, se enfraquece, se torna inaudível, mas continua
a existir. Ou será que não? Intrigou-se. Pois o que será que vinha antes da palma?
“Deus”, emendou logo, nervoso, querendo voltar à realidade, “antes da palma vem
Deus”. Mas a imagem não lhe ofereceu conforto, pois o que sabe é que Deus é uma
palma que nunca foi batida; é som que reverbera desde sempre e no sempre do
porvir como no instante agora.
A vida intimidava!
Ela abundava impiedosamente sobre o corpo friorento de Lúcio, que se comprimia
por não conseguir assimilar toda a existência que acontecia simultaneamente
neste exato momento. Concentrava-se no corpo vizinho, mas enquanto pensava
nele, sabia que outro corpo existia sem precisar ser percebido, sem a força de
um pensamento como o dele. Ele era mais um, assim como ele não era o centro da
Terra, pois este não é o centro do nosso sistema, que por sua vez não está no
meio do Universo, que, assim por diante, está enfiado num nada infinito que não
tem meio porque nunca fincaram-lhe um ponto específico para ser dito: “Aqui é o
início”.
Neste mundo
vivem milhares de corpos autônomos, além de outros tantos corpos que habitaram
este planeta e que deixaram o rastro de sua existência aqui. Mas aqui como,
onde? As existências conhecidas são poucas, e ainda assim, nem todos as conhecem;
sem falar de que algumas delas são baseadas em registros incertos, tão degradados
como a palma que some. Descrever – organizar, expressar, racionalizar,
destrinchar (...), como queira – tudo isso tudo num papel seria inútil a Lúcio:
nada escapa de uma ordem irremediável, da sucessão de fatos que observa. Não
conseguiria expressar a onisciência (parte orgânica, parte incorpórea) destes
seres todos que Lúcio pensava existir e tentava inutilmente digerir. E mais:
– Próxima estação: Paulista, transferência
para a linha Dois-Verde do Metrô.
“É aqui que eu
desço, é aqui”, sussurou Lúcio, exasperado, despertando. Com a mente inerte no
momento agora, ele pediu licença ao Outro e saiu apressado, incorporando-se à
correnteza de outros tantos indivíduos – um grande e besta cardume de peixes
vivendo em seus trilhos de existências translúcidas e breves como o dia, tão
monótonas aqui como no momento primeiro e também durante o porvir.
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