sábado, 26 de julho de 2014

Metalinguagem

Eu costumava atribuir-lhe o título de deusa em meus poemas.
Teus aspectos são, de fato, divinos.
Mas depois dei-me conta do sacrilégio da minha metáfora.
O sagrado tem dessas de ser intocável para que a sua pureza não seja maculada;
tem dessa contemplação à distância, pois sua aura não deve ser transposta;
tem dessa relação quase impessoal, pois são seres superiores, de todo modo.


Revisei meus poemas.
Passo a tratar-te como "semideusa".
És assim mesmo, o híbrido.
Assim posso provar da intimidade de beijar-lhe
o rosto,
a boca
e os seios,
mas com fervorosa devoção.
Quero atravessar
e apalpar a sua alma sem profaná-la.
Sentir-me indigno de estar em sua companhia, mergulhado em seus cabelos de luz,
como se fosse a resposta piedosa de uma prece.
És semideusa porque não te prendes a nada:
volta quando quer,
parte quando quer.
Tens dessas coisas semideusas, atendes a teu lado mortal e divino.
Como sou apenas humano, eu aguardo, carcomido até a tua próxima bênção.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Confissão

Toco meu rosto.
Estou cansado.
Aqui dentro, acumulado,
o amor me consome.

Não peço muito.
Quero apenas ser a parte necessária de alguém,
defeitos inclusos,
e ser recíproco.

Mas o coração continua a estalar como um móvel antigo,
que já se acostumou com a ideia de se expandir e retrair
em vão.

Estou prenhe de amor
e virgem dos teus beijos.
Ah!, o ímpeto de amar:
nasci deste desejo.

Amor,
troco minhas várias noites insones cavando poços fundos de solidão
por uma apenas,
cavando um lar feliz na relva do seu peito.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

- 4 -

O vão que há
entre mim e ti
pode ser atado
com um simples
dar das mãos.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

terça-feira, 22 de julho de 2014

Cena Avulsa Nº 1

Mesmo em pé no ônibus lotado, tirou do bolso o celular. Desbloqueou a tela. Alguns toques nela e ateu-se por um momento à leitura. Depois, um sorriso prolongado. E o estímulo era tanto que por pouco não se converteu num som que, sem dúvida alguma, chamaria a atenção dos paulistanos carrancudos que compartilhavam o mesmo espaço mínimo. A cena não os contagiaria. Muito pelo contrário, teria incomodado os demais. Eu tive que me conter no assento, restrito apenas à observação. Fiquei imaginando quem seria a pessoa do outro lado da tela. De uma coisa eu tenho plena certeza: é um ser miserável. Por não ter dito a mensagem cara a cara, tête-à-tête, com a entonação de voz própria ao invés de letras pretas e insossas numa parede branca, perdeu o sorriso mais lindo deste planeta. Um tal sorriso que se abriu como uma janela, bem escancarada pra um dia bom…

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Copa das Copas

Para a alegria ou tristeza de nossos pessimistas, teve Copa sim, teve Copa bem boa, teve Copa demais! Leia isso considerando que quem vos escreve é uma besta futebolística, tanto na técnica quanto na teoria. Os pré-históricos sabem mais do que eu.
 Já no aquecimento para o Mundial, presenciei a busca voraz de muitos para completar o álbum da Copa. Meus colegas se tornaram crianças. Ouvi relatos de gente virando a noite colando figuras, montando planilhas, comparecendo aos grupos de trocas. Crianças, velhos, homens, mulheres, altos, baixos, gordos, magros, palmeirenses, corinthianos - tinha de tudo um pouco. “E você é de onde?”, ouvi um cara perguntando ao outro, em um encontro num shopping. “Guarulhos”, o outro respondeu, já passando o elástico em volta do bolo nas mãos, findando o escambo. “Opa, sou de lá também!” Seguiram os dois. No final, já tinham percebido que moravam perto e que na esquina tal, ali, na ladeira xis, em frente ao mercado dois, haveria mais troca no próximo final de semana. Combinaram de se encontrar e foram embora.
 De repente, não mais que de repente, começaram a brotar em terras paulistas uma infinidade de mexicanos nos barzinhos, alemães na Paulista, argentinos na Anhangabaú, franceses no Museu do Futebol, colombianos e chilenos no Parque do Ibirapuera. De repente, o metrô que eu pego cotidianamente começa a dizer “next station…” e “access to subway line…”. De repente, tenho de ensinar a um grupo de turistas (acredito que eram de algum lugar dos Balcãs, mas como chuto mal, posso estar tremendamente errado) como inserir o bilhete na catraca. De repente, na Luz, o vaivém cinzento de pessoas indo labutar dá lugar a ondas coloridas que mudavam conforme o dia: ora laranja mecânico, ora vermelho “olé”, ora xadrez croata.
  Mas a onda maior, a mais forte, mais intensa, sem dúvida alguma, foi a tupiniquim, verde e amarela, canarinha. Não só porque sustentamos a seleção brasileira quando não jogava bem ou, pior, dava vexame (opa, mais um gol da Alemanha!), mas porque o cenário fora dos estádios foi um espetáculo à parte. Acolhemos tão bem nossos visitantes que eles querem voltar. Nisto fomos, realmente, vencedores. Frustramos a imagem de que quem tentasse vir pra cá nem chegaria porque haveria filas nos aeroportos. E se, com sorte, chegasse, então seria roubado. Ou se não fosse roubado, não aproveitaria bem as cidades-sede porque o trânsito seria caótico. Por aí vai…
  Os odiadores me odiarão porque não citei as partes negativas da Copa. Sei bem delas ($$$, […]), porém não vou demonizar a festa e colocar na conta do futebol, que é, ou deveria ser, um esporte para nos entreter, emocionar, divertir (e o que há de tão mal nisso?). Coisa de quem não sabe dar a Cesar o que é de Cesar. Misturam as coisas como fizeram no incidente do Neymar e da queda do viaduto em BH. Duas notícias tristes, mas houve quem julgasse um esdrúxulo sentir pelos dois fatos.
            Enfim, a Copa do Mundo de 2014 vai fazer bastante falta. Vou sentir saudade desse mix de povos, das torcidas, dos jogos decididos nos minutos finais para desespero dos apostadores de bolões da firma, das bizarrices à la mordidas del Suárez. Dos memes! (Meu Deus, o que será de mim sem os memes?) Copa da Zoeira, já pode voltar!!!

quarta-feira, 9 de julho de 2014

À Noite

O coração bate forte,
como que quer bater tudo o que
não bateu hoje.
E dá vontade
de descer as escadas e andar pelas ruas da cidade
e mastigar o frio no ermo da cidade
à noite, a lua clara de verdade
e pela verdade, com uma música irritante
como companhia, quero velocidade
olhando pra cima sem esbarrar em nada: liberdade,
é muito do que não existe aqui, e claridade
nem sempre é preciso mas, na verdade,
o que me falta aqui é água fria no balde
e coragem, pra conseguir afogar minha maldade.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sobre bolsos internos

          Se existe uma coisa que eu queria ter quando era pequeno era um terno. Não sei explicar por que, mas os ternos de meu pai me passavam um senso de responsabilidade que eu almejava. Com um terno, homens pegavam transporte público ou carro para ir aonde eu não fazia ideia, até porque esta cidade tinha o tamanho do Universo na minha cabeça de cinco, seis anos de idade, para fazer suas tarefas diárias e depois voltar ao conforto do lar.
          O que também me fascinava no terno eram os bolsos internos do paletó, em especial os de meu pai. Lá, ele colocava tudo: um lenço, uma caneta, um pedaço de papel, outros pormenores e... moedas de troco. Ah!, as moedas de troco! Era um compromisso meu ir diariamente ao quarto de meus pais, em surdina, às cinco da tarde, para vasculhar os Bolsos Internos do paletó do dia. Minha fortuna eram dez, quinze centavos. Com sorte, encontrava moedas de cinquenta, daí eu era o ricaço da vez (dava pra encher um saquinho de balas na esquina)!
          Tudo isso pode parecer um monte de bobagens a você, adulto trabalhador, mas apenas tente desfazer a fantasia de uma criança... Além de inútil, seria perverso.
            Pois bem, este sentimento foi acentuado após a leitura de um livro que eu gostava muito, chamado “O Terno Tanto Faz Como Tanto Fez”, da poetisa norte-americana Sylvia Plath. Ele conta a história de Max Nix, um garoto que morava com os pais e seis irmãos em uma cidade chamada Winkelburgo. Embora Max tivesse uma vida de dar inveja, ele ainda tinha um desejo: “mais que tudo no mundo Max Nix queria ter um terno”, o qual pudesse usar em toda e qualquer ocasião.
            Como eu era o único filho da família (tinha, na época, apenas uma irmã mais velha), logo eu herdaria os ternos de meu pai. Minhas esperanças se avolumaram junto à vontade de crescer mais rápido, ao menos o suficiente para “vestir” meu sonho.
            Certo dia, minha mãe, que costura por hobby e às vezes faz um serviço aqui e outro ali, me chamou em seu ateliê para provar uma blusa de moletom. Não era a primeira vez que ela fazia aquilo – minha mãe sempre fez e ajustou roupas para todos da família. Esta peça em especial era azul marinho por fora, tinha forro listrado em branco e azul, e um zíper dourado. Até aí, nada de impressionante. Mas quando eu vesti a blusa, percebi algo: na parte de dentro, havia um bolso. Sim, meu caro leitor, era um bolso interno como o dos paletós de meu pai.
            Daquele dia em diante, aquele casaco se tornou o meu preferido, minha ostentação infantil. E como eu só podia usá-lo nos dias frios, logo eles também se tornaram especiais. Na ocasião, acordava mais cedo para ir à escola e guardava parte dos meus pertences no meu Bolso Interno. Saía porta afora e dizia a mim mesmo, mentalmente: “Vamos trabalhar, Gustavo”, e me imaginava percorrendo um longo caminho de ônibus ou trem, embora minha casa distasse apenas uma quadra do prezinho onde estudei. Na sala de aula, muito a fazer: lápis e cadernos para manter organizados, pilha de desenhos para colorir, o brinquedo para cuidar, o comparecimento obrigatório ao parquinho, a areia para tirar de dentro do tênis... Ufa!
          De vez em quando eu relembro essas cenas quase que claramente. Não tem como evitar, afinal, o prezinho ainda continua lá, a uma quadra de casa. A diferença é que hoje eu de fato pego transporte para chegar ao trabalho, e a cidade de São Paulo já não é tão Universo assim. Eu (infelizmente) já não visto mais a grife Mãe, sob medida, nem surrupio mais as moedas do meu pai (passei a bola para meu irmão mais novo). E mesmo agora, crescido, não uso terno (se bem que as vezes que precisei usar tiraram todo o meu encanto pela peça). De qualquer forma, hoje eu tenho alguns casacos que não são de moletom, também não são azuis nem possuem zíper dourado, mas têm bolso interno. E lá, eu coloco a minha nostalgia junto a tudo o mais que necessito.