segunda-feira, 29 de julho de 2013

A Partida

          Maria José sentou-se no último banco do velho ônibus. Deste modo estaria mais perto da sua casa, e chegaria mais tarde ao destino, mesmo que por poucos segundos em relação aos passageiros da frente. E na chegada, o que a esperaria? Não sabia dizer e nem queria pensar. O que deixava pra trás ainda tomava boa parte de seu pensamento. E nessa recaída de saudade, Maria apertou o neném contra o peito. Sorriu. Pelo menos poderia garantir o leite para seu filhote enquanto estivesse viva. Agradeceu a Deus pelos Seus favores às femininas, e agradeceu também pela sua vida que Ele haveria de manter sã até seu filho ganhar altura. Gostava de ter fé nisso, ainda que, às vezes, as circunstâncias lhe fizessem desacreditar de tudo. E entre os peitos da mãe e a cara vermelha da criança estava um terço que machucava o neném com os cravos de Jesus. Incomodado, o neném se remexeu, principiou um resmungo. A mãe começou então a cantar uma cantiga que aprendeu na infância com sua mãe, que aprendeu com a sua vó, que diz tê-la aprendido da biza. Assim acalmou o menino e um pouco de si mesma. A melodia lembrava-lhe a infância que, embora sofrida, fora uma infância de criança que brinca. Estudo também era importante para painho, um dos poucos que pensavam assim. E agora esperava colher o que plantou no passado nesta viagem que durou três sóis, mas que já não era tão sol quanto o de onde veio. Desceu do ônibus pensando nisso. O motorista ajudou a desembarcar a mala de Maria enquanto ela respirava o cinza, cor que nunca havia visto nem sentido antes, senão pelo preto desbotado das vestes de luto, e dos bancos empoeirados e encardidos do ônibus que fizeram o filhote espirrar. Em seguida, ele abriu a boca ainda sem dentes num sorriso, e ela quis acompanhá-lo, mas sentiu que estava esquecendo alguma coisa. Olhou para o lado, e lá estava a mala. Olhou pra trás, o ônibus já partia. Pôs então a mão no peito oco, agarrando com força o seio ressequido exceto pela água vermelha, que corria, e a branca, que alimentava. Logo soube o que havia esquecido: tinha deixado o coração lá na esquina da rua de casa, que serve de fim pras romarias.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Memórias

 figuras,
memórias   gravadas
            em músicas
       minúcias, sentimentos
gravados em objetos
      significado ao que não  tem valor
     nova dimensão,  outro    mundo
     acesso livre,     irrestrito
        gratuito,  profundo
       medidas         infinitas
              lembranças
que voltam
    tristes,         alegres
     neutras,    mascaradas
     espalhadas,            soltas
       que unem-se em registros
  momentos marcados
   que não marcam sua volta
     é o momento
                  e nada mais
pode ir, e voltar    nunca mais
  e se volta,     à casa torna
e nos sentimos em casa
             é foto
       que marca outro momento…
   são mais memórias.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Coisas Ordinárias

Tudo que me toca e me fascina,
pra mim parece poesia:
um jornal e uma xícara de café
a moça no parque vestida de azul,
a câmera na mão da menina,
o carteiro que passou e ninguém viu;

O açougueiro assobiando na rua,
e o balanço do salgueiro no outono;

É a partitura;
É a música;
É quem toca,
e quem escuta;

Um menino
lendo um livro
sentado à porta
de uma igreja;

É a sensação
de quando o sol se põe
num infinito de céu que escurece;

É um arco-íris enclausurado
numa bolha de sabão;

A mulher de olhar reticente,
e também o homem comprando passagens;

São os movimentos da mão;

O tlec-tlec da minha máquina de escrever
e o vaivém de pessoas e de trens 
na estação;

É o escuro, é o couro, é o mudo,
e o sangue, e o amarelo, e o funil.

E é tanta coisa bonita
que com tanta coisa rima
no sentimento e na grafia
que sei lá,
minha contemplação das coisas ordinárias 
toma tanto do meu tempo
que sei não,
devo ser tão ordinário quanto.